Projeto Cryoshell, uma história em um futuro cyberpunk - Parte 3
Há alguns anos, iniciei esta pequena saga situada em uma época futurista, mas com uma certa ligação com o passado...
Quem nunca pensou em voltar no tempo que atire a primeira pedra. Sabe quando você faz aquela prova e se arrepende de não ter estudado nadinha de nada; ou quando briga com alguém por uma coisa boba e acaba saindo da boca uns absurdos que você nunca falaria se não fosse a tensão do momento; ou quando você quebra aquela jarra preferida da sua mãe que passou de mão em mão por gerações? A vontade de ter um botãozinho para clicar e consertar todos os nossos erros é gigante. Viajar no tempo poderia resolver muitos problemas. Se isso fosse possível, acidentes não aconteceriam mais.
Tudo o que fizéssemos na nossa vida seria teoricamente o caminho certo; poderíamos testar vários trajetos e analisar qual faria mais sentido naquele momento. E, se um dia aquele caminho não fizesse mais sentido, relaxa amiga, nada de estresse, voltamos atrás e resolvemos isso! Mas esses são só alguns exemplos mais banais do que uma máquina do tempo poderia resolver. Imagine poder salvar vidas, corrigir catástrofes, evitar guerras, etc.!
Dora Leroy e Clara Browne (Revista Capitolina)
Começo a ouvir uma música lá no fundo. Aos poucos a intensidade vai aumentando, chegando no seu ápice, com uma forte batida a la Prodigy.
Quando dou por mim, percebo que Raphael está me encarando, com cara de quem chamou várias vezes e não foi atendido.
— Acorda manooo! Onde você tava?? kkkkkkk
— Viajei com essa música que o Dj tá tocando. — Respondo, mas ainda com imagens desconexas em minha mente.
— Rickard, preciso te contar algo, algo que realmente pode mudar a coisa toda. E mais uma vez nossos nomes estão no meio disso que vou te contar. Você sabe que ficamos na criogenia por 70 anos e acordamos num mundo diferente daquele que conhecíamos, mas que só havíamos visto em filmes como Blade Runner, Altered Carbon, por exemplo? Este é um mundo — gesticula Raphael com as mãos apontando para o nosso redor — que pode ser diferente tecnologicamente do nosso de anos atrás, mas é igualmente triste. Muitas pessoas que não possuem a tecnologia que poderia salvar ou mudar vidas, pobreza, morte, fome, etc, etc e etc.
— E onde nós entramos nisso?? — Pergunto de forma curiosa.
— Cara.. lembra do filme De Volta Para o Futuro?
— Hummm.. daquele que tinha um Delorean como máquina do tempo??
— Esse mesmo!
— E?
— Se encoste bem no sofá… Já imaginou se pudéssemos voltar no tempo? Nunca passou pela tua cabeça que nossa vida foi ferrada por uns fdp, em benefício de uma experiência que poderia beneficiar somente eles e que agora temos uma grande chance de mudar a parada?
— Raphael, isso seria muito bom se fosse verdade!
— Calma lá, ainda não terminei.
Estou curioso para saber o que ele tem pra contar, qual seria essa revelação tão importante que poderia mudar nossas vidas? Realmente concordo com uma coisa que ele falou, de termos nossas vidas arrancadas de nós em prol desses fdp @#$%!
— Rickard, vou direto ao ponto. A Policom, com o apoio de um conglomerado de empresas, criou algo similar a uma máquina do tempo! Pelos registros que tive acesso, estão querendo começar os testes semana que vem!
— Oi?? — Pergunto, meio que não entendendo direito o que acabou de me dizer. — Tá doido mano?
— E tem mais Rickard. Adivinha quem são as duas pessoas que eles utilizarão nos testes??
— Não diga que somos nós… — Falo com receio. — Por favor, chega de testes. Mas é de se esperar essa decisão dos caras. Pensando bem, aqueles testes com medicamentos que fizeram conosco lá atrás e o tempo que passamos na criogenia, deve ter sido o fator decisivo para nos escolherem pra essa nova experiência.
— Nossos corpos aguentaram todas essas experiências e provavelmente entenderam que estamos aptos para o que estão querendo fazer.
— Raphael, o que pretende fazer?
— Ainda não sei, por isso preciso da sua ajuda.
— Olha, realmente gostaria que isso fosse verdade. Para ter certeza de que o que está falando é verdade, precisaremos então dar uma olhada no 5° subsolo (veja a parte 1 desse post, onde ele é mencionado) do prédio da Policom, pois não posso ficar com essa dúvida cutucando minha cabeça.
— Rickard, quando pretender ver isso?
— Ainda não sei, mas sei de uma coisa: Hoje quero tomar umas e me divertir! Hahahaha
Abro os olhos na manhã seguinte. Ufa, estou na minha cama. Sinto meu braço esquerdo dormente. Espera, acho que tem alguém em cima dele. Viro a cabeça para o lado e vejo que tem uma mulher deitada junto a mim, com parte da cabeça apoiada no meu braço dormente e no meu peito. É uma linda mulher morena de longos cabelos, com boa parte deles cobrindo um dos olhos. Ela não me é estranha. Acho que já a vi pela região.
Após ter deixado Raphael no sofa da balada, fui até o bar e me apoiei no balcão. Enquanto tomava um gole de cerveja, percebo que alguém lá na pista está me encarando. Uma mulher de cabelos longos, com uma beleza totalmente diferente para os padrões da época atual. Se chama Anna. Tomei coragem e fiz sinal para ela com o copo. Lentamente ela veio até mim, como aquela mulher que sai da água salgada da praia e em câmera lenta mexe nos cabelos. Ali só não tinha a água da praia, mas tinha Ela.
Conversamos bastante. Aquele sorriso me encantou. E agora ela está do meu lado, com a cabeça deitada sob meu braço. Não é um sonho. Com cuidado, tiro meu braço de baixo da cabeça dela e coloco um travesseiro no lugar.
O dia seguinte
Sento no meu lado da cama, com os pés no chão, enquanto olho em direção a janela do quarto. Visto a mesma camisa que estava utilizando na noite anterior. Me sinto estranho. Sabe quando sem um motivo aparente você se sente em um clima de despedida? Pois é, estou assim. Levanto-me e vou até a janela. Ainda está escuro. Em meio as luzes dos prédios e luzes de neon das placas de anúncio em vídeo, vejo vários hovercars indo de um lado pro outro. Aquela revelação de Raphael me traz ao mundo real, como uma avalanche na minha cabeça.
Preciso descobrir.
Mas nesse momento preciso tomar um café.
Cadê Raphael?
Cruzo a sala em direção a cozinha e tropeço em algo, mas me apoio no sofá para não cair. Olho para baixo e vejo Raphael sem roupa, abraçado a uma mulher (HAHAHAHA). Ele resmunga algo inaudível, mas volta a dormir. A sua companheira continua a dormir como um anjo. Esse cara hein.
Coloco uma chaleira sobre o fogão, que automaticamente acende as chamas quando detecta que algo é colocado sobre a boca. Enquanto aguardo a água ferver, preparo o pó de café sobre o filtro e o coador, que já está instalado sobre o bule. Isso pode parecer arcaico em 2085, mas gosto de fazer as coisas à “moda antiga”.
Fico pensando sobre o que Raphael me contou. Será que existe alguém lá em 2018 que está sentindo minha falta? Alguém que acha que me perdeu? Queria poder fazer algo, se o que meu amigo me contou for verdade. Uma parte da minha vida foi apagada, a realidade em que eu vivia foi tirada de mim, e outra foi colocada no lugar. Não sou um bicho qualquer, onde as pessoas podem fazer o que bem entender. As coisas não podem ficar assim.
Sou acordado de meus devaneios pelo estridente barulho do apito da chaleira. Abaixo o fogo, retiro a chaleira e coloco o bule em seu lugar. Um delicioso cheiro de café invade meu olfato quando coloco a água quente sobre o pó escuro, que contrabandeei de uma senhora da feira. Essas coisas são escassas hoje em dia.
Pego uma bandeja de madeira grande e coloco sobre ela o bule de café com uma tampa (para o café não esfriar tão rapidamente), 1 recipiente de metal com açúcar, 4 xícaras (que comprei numa loja de antiguidades), colheres, algumas fatias de pão francês e bolachas salgadas. Quando chego na sala, percebo que Raphael e sua “amiga” estão sentados no sofá e Anna está sozinha em outro. Ambos conversavam animadamente.
— E aí pessoal? Lembraram como chegamos aqui em casa? — Pergunto.
— Rickard, realmente não lembro. Hahahaha. — Responde Raphael. — Mila e Ana, você sem lembram de algo?
Ambas fazem sinal de negativo com a cabeça e caem na risada logo em seguida. Coloco a bandeja sobre a mesa.
— Sirvam-se à vontade!
Sento ao lado de Anna e fico observando ela tomar um gole de café com uma delicadeza inquestionável. O que estou sentindo? O que está acontecendo comigo?
Troco olhares com Raphael. Ele que não falaremos nada sobre a descoberta ali na frente das meninas.
— Anna, tome este cartão. Com ele, você e Mila poderão pegar um hovercar e voltar para casa. Qualquer hora dessas a gente conversa novamente. Tudo bem?
— Obrigada Rickard. Gostei de te conhecer — Após agradecer, me dá um selinho e fala baixinho no meu ouvido: — Quero te ver novamente.
Dou um abraço forte em Anna e um beijo demorado. Digo um até logo para ela. Na porta do meu prédio, Raphael e eu observamos o hovercar levantar voo. Duas mulheres nos observam da janela do veículo, enquanto que a potência das turbinas localizadas na parte inferior fazem nossos casacos e cabelos dançarem pelo vento causado. Após o hovercar desaparecer entre os prédios, percebo que Raphael está em encarando e fala algo antes que eu possa dizer qualquer coisa:
— Você está bem? Nunca te vi assim caidão por uma mulher.
— Cara, nem eu estou me entendendo.
Dou uma risadinha de canto da boca para ele.
— Cara, não podemos nos atrasar pro trabalho. Será melhor se não levantarmos qualquer suspeita para os caras da Policom. — Raphael concorda, fazendo um sinal de positivo com a cabeça.
Por meio de um aplicativo em meu smartphone, chamo um hovercar autônomo. Após alguns minutos, o veículo para em frente ao meu prédio. As portas do lado direito do passageiro (frente e traseira) se abrem automaticamente. Entro pela porta dianteira, mas me acomodo no banco de onde seria o do motorista e aciono o controle manual.
— Que que tá fazendo ai man? — Pergunta Raphael.
— Cara, hoje quero pilotar um pouco essa coisinha. Senta aqui na frente! — Faço sinal com a mão, apontando para o banco do passageiro.
O volante do carro é similar ao manche dos aviões. No controle do lado direito, aperto um botão que aciona o motor e as turbinas (localizadas na parte inferior do hovercar) e outro que faz o veículo levantar do solo, num movimento em espiral por cerca de 15 metros. Após chegar a esta altura, puxo um pouco o volante em direção ao meu peito, para uma subia em diagonal, em direção ao fluxo de veículos.
Pilotei por alguns quilômetros e verifiquei que até chegar a uma bifurcação imaginária, localizada na altura em que estávamos, tínhamos cerca de 8 km em linha reta. Acionei o piloto automático, e configurei uma determinada velocidade que o hovercar deveria seguir.
— Rickard, o que pretende fazer?
— Cara, precisamos agir o mais breve possível. E Hoje. Vamos trabalhar normalmente e não mudar a nossa rotina durante o horário do expediente. É depois que agiremos.
Chegamos em frente ao imponente prédio da Policom. Após descermos do veículo, nos dirigimos até uma porta ao lado direito do prédio, por onde somente pessoas autorizadas podem passar. Posiciono meu olho direito em frente a um leitor de retina. Um escaneamento é feito e a porta se abre automaticamente para mim. Raphael faz o mesmo.
Passei o dia analisando vulnerabilidades de segurança, procurando brechas nos sistemas da Policom e pesquisando sobre algumas coisinhas, além de, é claro, tomando alguns copos de café. O fim de expediente se aproxima, e com ele a noite em Nova São Paulo.
Preparativos e revelações
Olho para o relógio, localizado no canto inferior direito da tela do computador. São 19 horas. Troco olhares com Raphael que está apenas algumas mesas de distância de mim. É agora.
Mando uma mensagem para ele pelo smartphone, utilizando um canal criptografado que criei para nós dois. Levanto normalmente de minha cadeira, como faço todo dia após o expediente. Cumprimento as pessoas que passam por mim, digo um “oi” mais carinhoso para a recepcionista. Entro no elevador e me viro para apertar o botão do andar térreo. A recepcionista devolve um tchau com as mãos, enquanto as portas se fecham.
Olho para algumas notícias que estão passando em uma tela do elevador. Após alguns minutos, mas que pareceram uma eternidade, o elevador chega no térreo. Espero Raphael na recepção do prédio, conforme combinamos.
Segundos depois, vejo Raphael saindo pela porta de outro elevador, localizada ao lado da que saí. Faço sinal para que me siga até o lado de fora.
— Cara, e agora? — Pergunta Raphael.
— Como deve ter visto no documento que te mandei, o acesso para o 5º subsolo é feito por uma entrada localizada na parte de trás do prédio. — Respondo.
— Sei disso man. O que quero dizer é que não existe uma simples porta, sem nenhuma vigilância, mas sim que existe uma guarita com um guarda de segurança e várias câmeras viradas para a porta em questão. E após essa entrada ainda existe um teclado numérico, que chamará o elevador e nos levará até o destino. O que encontraremos lá embaixo?
— Calma Raphael, você é muito afobado. Deixa eu te falar uma coisa. De que adianta os caras terem todo esse aparato tecnológico de segurança se o ser humano de 2085 ainda é falho? Os caras confiam demais na tecnologia.
— É verdade. Eles não contavam com a gente. Mas e aí? O que faremos?
— Na verdade é o que já foi feito cara. Sabe aquelas câmeras apontadas para entrada que precisaremos passar? — Raphael faz sinal positivo com a cabeça. — Então, a central delas (dispositivo de gravação que recebe via cabo as imagens das câmeras) está localizada na guarita e fica conectada cabo ao computador do vigia. Este computador não possui conectividade com a rede da Policom (somente com a Internet), pois o serviço é terceirizado. O que acha que fiquei fazendo durante o dia além de trabalhar? Preparei todo o cenário todo.. .rs
Expliquei para Raphael que foi enviado para o e-mail do vigia um documento que ele deveria abrir. Ele caiu na conversa e acabou abrindo o arquivo. Mas o que realmente aconteceu por trás das cortinas, somente eu e Raphael ficamos sabendo. Mas vou te contar também.
Antes de mais nada, Criei um arquivo malicioso e embuti dentro do inofensivo arquivo. Ao ser executado, o malware me daria acesso completo ao computador (nesse caso, o do vigia) que controla as câmeras. Configurei um horário para que o programa do vigia que controla as câmeras fosse pausado. O vigia com certeza notaria isso, mas não nos notaria passando pelas câmeras.
— Mas então Rickard, até aí “tudo bem”. E depois que passarmos pelas câmeras? Ainda teremos o teclado numérico do elevador.
— Aí seremos nós e Deus. Vou utilizar um equipamento de leitura térmica. Basta eu apontá-lo para o teclado e assim saberei quais foram as últimas teclas pressionadas.
— O que faremos depois? Acha que a Policom não descobrirá nada sobre o que fizemos?
— Queria chegar nesse ponto. Saiba que essa é uma “viagem” sem volta. Depois do que descobrimos sobre nós, acha que ainda poderá viver uma vida normal em 2085, como se nada tivesse acontecido? Apesar dessa época ser tentadora, com carros voadores em um mundo estilo Blade Runner, ainda precisamos saber mais sobre nós, nosso passado.
— Rickard, deve estar esquecendo de um pequeno detalhe. Não fui colocado na criogenia na mesma data em que você. Enquanto você embarcou nessa em 2018, entrei no barco somente em 2023. Não olhou meu arquivo né?
Começo a pensar sobre o momento que fiz a descoberta, lá em casa. Eu vi o nome de Raphael, mas não cliquei sobre ele para ver os detalhes, apenas no meu. Raphael continua.
— Desculpa Raphael, em pensei que… — Mas sou interrompido por ele.
— Então cara, não sei o que encontraremos lá embaixo, mas é apenas uma viagem, para uma pessoa. Não posso ir na mesma época que você, pois encontrarei meu eu lá mais novo. Preciso voltar para a época exata em 2023.
— Me desculpa por essa, você como sempre é mais racional, enquanto eu vou mais pelas emoções.
— Fica tranquilo, não vou entrar com você lá, mas darei todo meu apoio daqui de fora, caso algo dê errado.
Raphael faz sinal para esperar um pouco. Tira do bolso dois pequenos aparelhos do bolso. Eu reconheço eles.
— Cara, um rádio Comunicador Motorola Talk About T100BR! Ele tem alcance de 25 KM! Mais do que precisamos.
— Rickard, nos comunicaremos por eles. Qualquer coisa que eu ver daqui de fora, te aviso!
— Obrigado Raphael, valeu mesmo! Vamos então? Já está quase na hora.
Continua…